O Brasil ainda
se recupera de uma tragédia nacional: 241 pessoas, na maioria jovens, morreram
no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Isso foi há pouco
mais de dois meses. Em uma reportagem especial, o Fantástico faz um retrato das
condições de trabalho dos bombeiros em todo o país. Será que eles estão
preparados para atender a população?
O fogo se
alastra rapidamente. O incêndio é numa empresa que recupera pneus, que são
altamente inflamáveis e tóxicos. O combate às chamas é improvisado com balde,
água mineral e mangueiras que não alcançam o foco do incêndio.
O fogo chega à
casa vizinha. Sem nenhuma proteção, três pessoas sobem no telhado, mas, de
novo, não adianta nada. O incêndio aconteceu em Bacabal, no interior do
Maranhão. Na cidade de 100 mil habitantes, não existe corpo de bombeiros.
Então, como o fogo foi controlado?
Contar com a
sorte pra apagar incêndios é comum na Brasil. Segundo um estudo do Ministério
da Ciência e Tecnologia, em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas
de São Paulo (IPT), apenas 14% dos 5570 municípios do país têm bombeiros. “Nós
temos aproximadamente 4,8 mil cidades sem bombeiros. A situação é muito, muito
crítica”, afirma o pesquisador do IPT José Carlos Tomina.
Durante um mês,
o Fantástico acompanhou essa situação. Algumas cidades até têm bombeiro, mas
são poucos e os equipamentos, quando existem, estão caindo aos pedaços. A
viatura do Corpo de Bombeiros é velha e enferrujada. Se começar a escurecer, o
veículo não pode rodar pela cidade, porque nenhuma lâmpada acende.
Segundo o
estudo do governo federal, acontecem, em média, 200 mil incêndios por ano no
Brasil. São mais de 500 por dia. Em Tocantins, das 139 cidades do estado,
apenas cinco têm bombeiros. E se acontecer um incêndio em um prédio, vai faltar
um equipamento importante: a corporação não tem escadas do tipo Magirus, que
ajudam no resgate de vítimas e no combate a incêndios em lugares altos. Nem na
capital, Palmas, de 228 mil habitantes, existe essa escada.
“É uma
deficiência sim. No passado, não se pensou em resolver esse problema. O
equipamento está sendo adquirido nesse momento”, afirma o chefe do Estado Maior
do Corpo de Bombeiros de Tocantins, coronel Dodsley Tenório Vargas.
Na cidade de
Floriano (PI), que tem 57 mil habitantes, pode faltar o principal na hora de
apagar o fogo. O tanque de água do caminhão fica vazando o tempo todo. Por
isso, mesmo sem ocorrência, todo dia tem que ser recarregado. São cinco mil
litros de água por dia.
O caminhão é
uma sucata. O freio não funciona direito e não há cinto de segurança. “Essa
unidade também não tem sistema de rádio, não funciona o limpador de parabrisa.
A porta sem vidro. Não tem condições de atender emergência. Ele vai, mas
colocando em risco o tráfego”, destaca o presidente da Associação dos Bombeiros
Militares do Piauí, Francisco Silva.
A equipe do
Fantástico acompanhou um dia de trabalho dos bombeiros de Floriano. Nenhum
deles está habilitado para dirigir o caminhão.
“O comandante
geral sabe que os bombeiros dirigem sem permissão?”, perguntou o repórter.
“Tanto essa
prática como outras condutas já foram informadas de maneira formal, mas o que
nós temos percebido é a total ausência de manifestação prática da autoridade”,
diz o capitão Anderson Pereira, da Associação dos Bombeiros Militares do Piauí.
A precariedade
do Corpo de Bombeiros do Piauí foi constatada pelo Ministério Público do
Trabalho. “Não fossem estabelecimentos de utilidade essencial para a segurança
da sociedade, esses estabelecimentos inclusive deveriam ter sido interditados,
eles não têm condições de prestar um mínimo atendimento à sociedade”, diz o
procurador do Piauí José Wellington Soares.
Em Picos,
também no interior do Piauí, 73 mil habitantes, outro exemplo de péssimas
condições de trabalho: um caminhão bem antigo foi todo adaptado para armazenar
água. Foi feita uma espécie de piscina na carroceria. O que era para ser só um
quebra-galho virou permanente. “O que se observa é que continua operando, como
se fosse uma viatura de combate contra incêndio”, aponta Pereira.
Em 2007, o
governo do estado e o Ministério da Justiça fecharam um convênio para construir
uma nova sede da corporação, em Picos. A equipe do Fantástico foi ver a obra
indicada pelos próprios bombeiros, que estaria parada desde 2010. O prédio está
abandonado, as paredes estão rachadas e o piso começou a trincar.
O Ministério da
Justiça que mandou quase R$ 300 mil para ajudar na construção da nova sede,
agora apura porque tudo está parado e se o dinheiro foi mesmo aplicado na obra.
O Fantástico procurou o comandante-geral dos bombeiros. “Não foram feitos,
digamos, a parte de projeto hidráulico, elétrico, de prevenção de combate a
incêndio. Não foi mais refeito o convênio e o governo do estado é quem vai
assumir aquela obra”, explica o comandante-geral do Corpo de Bombeiros do
Piauí, Manoel Bezerra dos Santos.
Das 224 cidades
do Piauí, apenas quatro contam com quartel do Corpo de Bombeiros: Floriano,
Picos, Parnaíba e a capital, Teresina. As equipes de Floriano e Picos, por
exemplo, são responsáveis pelo socorro a municípios que ficam a mais de 500
quilômetros de distância. “Em quase todas as ocorrências, os danos materiais
são completos”, destaca o capitão Anderson Pereira.
Foi o que
aconteceu na quarta-feira (3), em Piripiri, cidade com 61 mil habitantes. Um
incêndio destruiu uma casa em um bairro afastado. Maria dos Remédios Sousa, de
40 anos, morreu carbonizada. Ela era doente e morava sozinha. Foram os vizinhos
que tentaram apagar o fogo. “O bombeiro foi meu filho que pegou a mangueira e
estava por cima aguando, apagando”, diz a vizinha Francisca dos Remédios.
“É uma falta de
investimento do poder público. Infelizmente, os administradores não querem ver
a situação da comunidade”, afirma o promotor de justiça Nivaldo Ribeiro.
Uma pesquisa do
Ministério da Justiça mostra que, no Piauí, há um bombeiro para cada grupo de
9.430 habitantes. É a pior proporção do país. “O que se estabelece
internacionalmente é que se tenha um bombeiro para cada mil habitantes”, aponta
o pesquisador José Carlos Tomina.
No Brasil, no
que se refere a efetivo, apenas o Distrito Federal e os estados do Amapá e do
Rio de Janeiro seguem os padrões internacionais de segurança. “O ideal seria
que todos os municípios tivessem postos de bombeiros. A ideia é que, em sete
minutos, no máxi
mo, os bombeiros consigam chegar em qualquer emergência”,
avalia Tomina.
Em Minas
Gerais, das 853 cidades, 799 não têm Corpo de Bombeiros. Um delas é
Jaboticatubas, a 60 quilômetros de Belo Horizonte. Em fevereiro do ano passado,
uma padaria da cidade pegou fogo. “Só Deus para apagar. E a chuva”, conta o
dono do estabelecimento, Maurilio Marques de Paula Santos.
O comerciante
está indignado. Ele paga uma taxa de incêndio ao governo do estado. Ano
passado, o valor chegou a R$ 472, quase o dobro do IPTU. Mas, quando precisou,
os bombeiros vieram de outra cidade e o fogo já tinha destruído tudo. “Gastou
duas horas para chegar aqui. Não tinha mais nada. Nem fumaça tinha mais”, diz
Maurilio.
O Ministério
Público investiga supostas irregularidades com o dinheiro arrecadado com a taxa
de incêndio. Só no ano passado, o total passou dos R$ 56 milhões. “Você tem que
ter imediatamente o serviço a sua disposição, sob pena de um enriquecimento até
indevido do poder público, que recebe a taxa e não entrega o serviço”, destaca
o promotor de justiça Eduardo Nepomuceno.
Fantástico: O senhor acha justo o comerciante que não tem
bombeiro na cidade dele pagar a taxa de incêndio?
Capitão Frederico Pascoal (Corpo de Bombeiros-MG): Ele está sendo atendido sim por uma unidade do Corpo de Bombeiros. Existem cidades que não possuem unidade próxima e estas estão sim no nosso trabalho de expansão.
Fantástico: Todo dinheiro da taxa vem para o Corpo de Bombeiros?
Capitão Pascoal: Sim, o dinheiro da taxa é totalmente revertido ao Corpo de Bombeiros. O dinheiro é gasto 50%, no mínimo, com investimentos. Além, é lógico, do custeio de toda essa máquina, como, por exemplo, combustíveis, material de limpeza, a manutenção do Corpo de Bombeiros.
Percorrendo o
Brasil, o Fantástico encontrou outra situação grave. Devido à falta de
bombeiros, o trabalho de prevenção a incêndios fica seriamente comprometido. Em
grande parte do país, vistorias e alvarás demoram pra sair. “Se estivessem
ocorrendo avaliações com rigor, muitos edifícios estariam em melhores
condições. Muitos estariam interditados e nós não teríamos 200 mil incêndios
por ano”, aponta Tomina.
Segundo o
governador do Piauí, a situação vai mudar. “Nós convocamos os últimos 35
concursados recentemente. Já treinamos, qualificamos, capacitamos e agora
autorizamos um novo concurso público para os bombeiros do Piauí”, afirmou
Wilson Martins.
No cargo desde
2011, o comandante-geral dos bombeiros do Piauí reconhece a precariedade. “Você
tem que entender que aqui é um caso extremo. Não tem como. Eu vou botar quem
para dirigir o carro?”, pergunta Manoel Bezerra dos Santos. Essa foi a resposta
sobre o fato de bombeiros dirigirem caminhões sem carteira de habilitação.
Quanto à falta
de equipamentos e viaturas sucateadas, ele diz: “O que tem chegado aqui a gente
tem procurado atender. Certamente, alguma coisa ou outra possa ter passado
despercebida”.
Para ele, quem
tem que se esforçar são seus subordinados, que comandam os bombeiros no
interior. “Ele, comandante, solicita ao comandante aqui. Compete a ele vir aqui
na capital e ver. ‘Ó, comandante, eu preciso disso aqui para poder dar
agilidade nesse processo’. Ele tem lá dois carros pequenos para fazer vistoria.
Se ele não dá conta, sinto muito”, afirma Santos.
Na próxima
quarta-feira (10), Santos e Flamengo do Piauí têm jogo marcado pela Copa do
Brasil, no estádio governador Alberto Silva, o Albertão, em Teresina. Há duas
semanas, um laudo dos bombeiros atestou que a partida não poderia ser realizada
e que o projeto do estádio não tem "garantia de condições míninas de
segurança contra incêndio e pânico".
Mas o
comandante-geral decidiu liberar o jogo. “Analisei item por item. O estádio
está em condições de atender o jogo daquele dia 10. Essas imperfeições, com
certeza, até o dia 10, estarão todas, digamos assim, corrigidas”, garante.
O Fantástico
não pôde entrar no estádio porque o local estaria passando por reformas.
Sobre o
incêndio em Bacabal (MA), especialistas afirmam: foi sorte ninguém ter se ferido,
em outubro passado. “Isso aí é uma atitude de desespero, correndo risco,
inclusive, depois de virarem vítimas”, alerta o coronel da reserva do Corpo de
Bombeiros de São Paulo Paulo Chaves de Araújo.
Como Bacabal
não tem Corpo de Bombeiros, quando ocorre um incêndio desses, teria que vir uma
equipe da capital, São Luís, que fica a quase 250 quilômetros de distância.
Sabe o que
aconteceu? O improviso chegou ao ponto de o limpa-fossa ser usado para apagar o
fogo. “Perguntaram: ‘Ei, aí é água?’. Eu digo ‘não, é fezes, mais ou menos uns
quatro mil litros de fezes’. ‘A gente está precisando, que aqui o fogo está
demais’”, relembra Jaelson Santos Souza.
E essa não foi
a primeira vez que ele fez papel de bombeiro. Um ano antes, ele tinha apagado
um incêndio em um depósito de reciclagem. “Não fica muito cheiroso não. O
importante é resolver o problema”, diz.
No Maranhão, em
média, há um quartel de bombeiros para cada 20 cidades.
“Por que não
tem mais bases do Corpo de Bombeiros no estado?”, pergunta o repórter.
“A grande
problemática é efetivo, tanto que o governo do estado está otimizando já. Temos
um concurso em andamento para a entrada de mais 150 homens neste ano e em 2014,
há uma previsão de mais 150 homens”, responde o comandante-geral do Corpo de
Bombeiros do Maranhão, coronel Wanderley Pereira.
Para
profissionais que sempre foram vistos como heróis, tanta precariedade causa
vergonha. “O nosso bombeiro tem vergonha de ser bombeiro. Hoje, o nosso
bombeiro está trabalhando com aquela ausência daquela força que nos move que é
a paixão, que é o amor de salvar e resgatar as vidas alheias”, diz Anderson
Pereira.
E qual seria a
solução? “O maior problema é não ter regra, requisitos de desempenho e
fiscalização. Cada um faz o que quer”, aponta Araújo.
“Tem centenas de
boates Kiss funcionando no Brasil e é muito fácil de repetir o que aconteceu
lá. Que a gente consiga tirar alguma lição dessa catástrofe, dessa comoção
nacional que aconteceu em Santa Maria”, afirma o pesquisador José Carlos Temem
http://s04.video.glbimg.com/x240/2503659.jpg
0 comentário "INOPERÂNCIA DO CORPO DE BOMBEIROS FAZ COM QUE CARRO DE LIMPAR FOSSA SEJA USADO PARA APAGAR FOGO NA CIDADE BACABAL - MARANHÃO"
Postar um comentário
Deixe seu comentário