A
mentira usada politicamente tem uma trajetória tão longa quanto à história da
pólis no contexto de suas intrincadas relações. Tais interações implicam sempre
a presença do elemento psicológico na arquitetura do Estado e, portanto,
caracterizam a inseparabilidade, nessa organização social, dos fenômenos
subjetivos que integram sua composição. A mentira vista assim não é
simplesmente uma carta no jogo político usada bem ou mal pelo governante ao
sabor das razões de Estado, mas uma função tanto do psiquismo humano quanto da
política. A teorização de Platão e Maquiavel até Weber já antecipa essa
compreensão que a psicanálise pode fundamentar. O corte epistêmico
maquiaveliano que retirou a ética do núcleo da nascente ciência política dá à
mentira um estatuto especial no seu corpo teórico, na medida em que concede ao
governante direito ao uso de meios excepcionais para alcançar os fins
almejados.
Esse
modelo será a raiz futura de muitos equívocos e incompreensões que, na prática
política, entrará em contradição com uma determinada postura ética ou,
inversamente, fará uma aliança com valores tirânicos e didatoriais. Essa é, na
verdade, a essência da vida política, pois o ser humano que a configura e
pratica oscila sempre entre bondade versus crueldade e verdade versus
falsidade. Mas isso constitui a própria dialética do conceito de ética que, por
definição, está excluída da práxis política maquiaveliana. A utilização, pelos
condottieri, da coerção, do medo e mesmo da crueldade, reforça ainda mais a
impressão de contradição, mas Maquiavel não dá ao Príncipe o direito à tirania.
Isso significa que o pensador florentino conhecia muito bem a natureza humana
e, sendo assim, integrava à narrativa de O Príncipe todas as contradições do
comportamento humano. A passagem do passionalismo egoísta ao processo político
ético integrado é um objetivo desejado mas impossível de alcançar. O
pessimismo, aqui, deriva de Freud, porque o "Inconsciente" nunca dará
à "Razão" essa autonomia cartesiana.
O uso
autorizado da mentira em política é referido por Platão (1993:97), que compara
sua aplicação ao uso que o médico faz da sonegação da verdade e do veneno com
finalidade curativa. Existem no texto platoniano duas espécies de mentira, uma
moralmente sancionada, ou mentira útil, e outra absolutamente condenável, que é
referida do seguinte modo: "Por conseguinte, a mentira autêntica é
detestada não só pelos deuses, mas também pelos homens".
Temos
aqui a validação clássica da mentira política que certamente pode assumir as
mais diversas formas. Evidentemente, tal manuseio do médico-político implica a
existência de um profissional competente e eticamente orientado. Assim, tanto
no filósofo grego quanto no florentino, não há clareza sobre a aplicação dos
valores à política, embora o primeiro lhe dê uma dimensão mais essencial e o
segundo mais contingencial. Minha intenção, entretanto, não é fazer a exegese
da interação entre ética e mentira nesses textos clássicos, mas examinar tais
componentes psíquicos e políticos do ângulo da psicologia. É dessa perspectiva
integrada que Max Weber estabelece a diferença entre uma ética de resultados e uma
outra baseada em princípios. Trata-se de uma reinserção categorial da
ética na política através do individualismo radical dos tipos ideais. Essa
visão naturalmente não coincide com a perspectiva lukacsiana de uma ética
incorporada na Consciência Social, mas não pode ser negada sua presença no
governante capitalista moderno, no líder mítico e no condutor paranóico. Deste
modo, é possível aproximar a mentira política da falsa consciência narcisista
no capitalismo monopolista e aquela dos regimes paranóicos, como me referi.
O caso
Narcisismo
. O
narcisismo é, por sua essência, a negação do Nós e, portanto, no plano
político, corresponde a uma vivência de exclusão econômico-política para a
maioria da população. Essa perversão utiliza sempre a mistificação como prática
corrente na atividade social. A mentira política sempre foi justificada na
teoria e na prática, tendo as razões de Estado como escudo.
Entretanto, quando a mentira assume uma dimensão institucional, se rompe o
arcabouço ético do sistema... A mentira, como o medo, tem uma função precisa no
processo político, mas sua utilização - sempre discutível - implica o alvo da
verdade maior.
A
questão da verdade é filosoficamente sinuosa sendo posta no apriorismo do
dever, na obrigação espiritual de não pecar no apriorismo do dever, na
obrigação espiritual de não pecar ou no pragmatismo do não errar para não se
perder nos negócios. Deste modo, podemos ler no artigo de Celso Lafer
(1992:230) que faz a seguinte indagação: "[...] por que,
na tradição do pensamento ocidental, só Santo Agostinho e Kant sustentam sem
vacilação o dever da veracidade?" Penso que a resposta a esta
pergunta se encontra na maior sensibilidade de um pensador como Maquiavel para
captar a contradição do desejo, da paixão, do afeto e da fantasia no
inconsciente humano. A compreensão, portanto, de que Deus não existe sem o
Diabo e ambos estão nas duas faces de uma mesma moeda, assim, mentira e verdade
constituem um par dialético sempre presente na intimidade do psiquismo e, com
razão maior, no curso do desenvolvimento histórico. Para Freud, lobo e cordeiro
sempre andam juntos, pois o inconsciente que carrega o desejo não conhece
caminhos morais ou amorais que permitam sua realização sem contradição no
pensamento e na ação.
A
existência de uma falsa consciência narcisista que corresponde aos vinte por
cento da humanidade que usufrui dos benefícios do capitalismo neoliberal é uma
hipótese plausível cuja comprovação pode ser encontrada na deformação
caracterológica de uma extensa parcela de homens públicos. É por esta razão que
discordo inteiramente de uma afirmação como a que faz Lafer, no artigo
referido, há pouco, mesmo considerando as ressalvas posteriores quando diz: "Por
isso, numa democracia, teoricamente, a publicidade e a veracidade são a regra,
e o segredo e a mentira são a exceção" (p.233).
A
sobriedade científica ou a da ciência jurídica não pode ser o tom de quem se
coloca no vértice político da classe dominada. Tal concepção implica o
entendimento de que o segredo e a mentira, embora inerentes ao funcionamento do
psiquismo do homem, fazem parte de um processo de manipulação comunicacional de
uma pequena minoria mundial e nacional. Além disso, "democracia" é
uma entidade mais fortemente jurídica que sociológica e pressupõe a base
contratualista, originária do Iluminismo que o capitalismo monopolista atual se
encarrega de despedaçar. Nesse sentido, o tecnicismo jurídico e a defesa
intransigente das regras institucionais é uma camuflagem lampeduziana. Localizo
a mentira política como inerente à sua configuração de classe e, portanto, a
falsa consciência da grande burguesia, no meu entender, é a portadora
privilegiada da mentira autêntica de que fala o texto platoniano.
O fato
é que existe hoje um movimento tendencial - contrariamente a Hegel que afirmava
a prevalência do Estado sobre a ética - que tende a "eticizar" o
processo político, baseando-o em sistemas mais estritamente normativos. A ética
pode, dessa maneira e paradoxalmente, se tornar o núcleo mais rico da mentira e
da falsa consciência da grande burguesia transnacional em aliança com a
política tecnológica. Por outro lado, quando falo da mentira em geral e
coerentemente com os pressupostos deste ensaio, sou levado a colocá-la como imanente
ao funcionamento político. Assim, a mentira, como o medo, é parte da práxis
política e seu manejo para o bem ou para o mal depende de uma consciência
específica de classe. A consciência de classe que pode adequada e justamente
utilizar na vida política a transgressão útil é aquela oriunda das relações
sociais e de trabalho de classe dominada moderna.
A
psicanálise entende que existe no homem "um sentimento do verdadeiro"
(Meltzer, 1989), o qual corresponde ao que Bion chamou função K, para designar
precisamente a luta interna do ser humano no embate permanente entre a verdade
e a mentira. Isso corresponde, na lenda de Édipo, à sua persistente busca da
verdade sobre sua origem. Entretanto, a arrogância narcisista com a qual
revestiu sua procura levou ao trágico desenlace, relembrado pelo próprio rei em
Colona, no seu exílio à espera da morte. A prática da mentira tem,
provavelmente, origem na filogênese humana e, tanto quanto a transgressão
sexual, sua manifestação sempre foi submetida às sanções e às leis
constituintes do processo civilizatório.
O
mimetismo animal para escapar do predador ou da agressão inimiga é absurdamente
simples diante da capacidade de fingir do homem. Este é capaz de se esconder na
abstração intelectual e na doutrina filosófica para escapar à responsabilidade
e ao compromisso social. O homem pode dizer a verdade fingindo estar mentindo
ou pode mentir passando-se por verdadeiro, e essa capacidade atualmente
alcançou o nível da mentira eletrônica, com o desenvolvimento da parafernália
comunicacional usada para monitorar o consciente e o inconsciente da maioria
esmagadora da população mundial. Tal situação, no mínimo, põe a existência
social da democracia entre parênteses e permite afirmar que o locus mais
importante da mentira política moderna encontra-se na falsa consciência
co-extensiva ao processo midiático à disposição dessa minoria narcisista
internacionalizada. O ponto mais extremo dessa configuração pode ser encontrado
nos regimes e respectivos governantes ostensivamente paranóicos. Nesses, mais
do que nos sistemas narcisistas, existe uma ética particular que sustenta e
convalida a mentira política.
A
falsificação midiática
O par
verdade-mentira nesse sistema desaparece como combinação dialética e mediada em
busca de uma verdade possível. Transforma-se, então, num conceito delirante,
segundo o qual o inimigo é por definição falso e mentiroso e o amigo, mutatis
mutandis, honesto e verdadeiro. Essa ética radical, gerada por um superego
paranóico, se encontra tanto à direita quanto à esquerda no desenvolvimento da
história política do homem. A concepção de mentira que desenvolvo aqui,
portanto, é sempre referida ao bem ou mal que o ato político produz no conjunto
maior da população e ao sentimento de verdade psicologicamente determinado pelo
bem-estar produzido no governante, pelas condutas eficazes e bem recebidas pelo
povo.
A
falsa consciência da minoria narcísica se encontra, atualmente, integrada no
sistema comunicacional cuja rede mundializada domina a população. A utilização
dos mass media constitui um instrumental simbólico à disposição do capitalismo
monopolista que perverte o psiquismo humano, não somente no sentido dessa
falsificação de classe, mas, também, deformando os padrões éticos integrados
numa identidade individual e social em processo de despedaçamento. Tal
desintegração produzida pelos media corresponde concomitantemente à instalação
dessa falsa consciência consumista e egoísta no mais íntimo da coletividade
humana.
A
mentira gestada através desse processo é, provavelmente, a grande falácia
política com que se defronta o homem moderno. A condição desconcertante está
articulada a uma situação emocional, em que as pulsões sexuais e agressivas
banalizadas assumem contornos grotescos no mundo inteiro. Assim, ao incremento
da pedofilia se junta uma violência social sem precedentes no interior das
organizações sociais, tanto no capitalismo avançado quanto nos países
periféricos que compõem o sistema mundial.
A
imagem subordina a fala e o discurso à sua tirania, que substitui a moral
social e política pelo mercado e pelo consumo. Esta falsificação
axiológico-simbólica é, hoje, globalizada e utilizada pelas elites dominantes,
principalmente, nos países subordinados do sistema capitalista. A ética se
tornou instrumento privilegiado da falsa consciência, na qual a mentira se
encontra embutida na práxis política. Esta dimensão da mentira política jamais
poderia ser pensada por Platão ou Maquiavel, porquanto não poderiam eles
imaginar como a imagem pictórica viria um dia a ser utilizada de maneira tão
universalizada e convincente.
A
abrangência desse processo que articula a falsificação midiática com o
narcisismo de uma minoria vai, aos poucos, sendo assumida pela grande maioria
oprimida da população mundial e brasileira, como a única verdade. A
mentira-verdade do agressor se instala no psiquismo do agredido, como o
torturado assume e se identifica com a personalidade do torturador. Essa
condição que Hegel anteviu na dialética do senhor e do escravo não poderia ter
uma realização mais bem exemplificada do que na moderna sociedade capitalista
neoliberal. Portanto, poderíamos dizer, em termos platonianos, que a
"mentira autêntica" está finalmente instalada na sociedade política
humana.
A
questão psicológica da mentira
A
questão psicológica da mentira é, entretanto, muito mais complexa do que
vulgarmente se pensa. Sua raiz se encontra na pulsão epistemofílica formulada
por Freud, Melanie Klein e Bion, que situam a curiosidade infantil articulada
ao sadismo e oscilando entre a verdade e o pensamento onipotente. A
possibilidade sempre presente, portanto, de falsificação da realidade está na
essência do psiquismo humano. A situação que, no âmbito da produção do
pensamento, Bion chama de função K, expressa a dialética da relação
verdade-mentira. Assim, é muito fácil de compreender que uma determinada ética
possa conter a própria falsificação que seu discurso pretende refutar. Essa
ética pode ser tanto a do narcisismo da classe dominante quanto a dos regimes
paranóicos. A mentira, neste caso, é consubstanciada à ética, o que
filosoficamente é um paradoxo. Entretanto, na perspectiva política e na
dinâmica do inconsciente, essa contradição é perfeitamente conhecida e
reconhecida.
A
mentira, por outro lado, pode estar integrada a certas personalidades que a
psiquiatria denomina, sem muita precisão, de psicopáticas e a psicanálise
qualifica como atuadoras. Neste particular, é bom lembrar que a política está
situada na ordem do agir muito mais do que no refletir e, portanto, os
indivíduos de ação perversa ou equilibrada estarão sempre mais próximos do
acting out, do que do pensamento reflexivo. Evidentemente, o indivíduo perverso
age de modo falso, sintonizado com o seu Eu, enquanto as pessoas mais
equilibradas entram em choque com sua consciência ao mistificarem a realidade
em benefício próprio. A mentira do psicopata é ego-sintônica e, portanto, não
lhe causa culpa ou remorso. Essa condição pode evoluir desde a mentira
convencional, passando pela mentira delinqüencial, até alcançar a mitomania.
Deste modo, teríamos embutidas na vida política quatro formas básicas de
mentira: a mentira por motivos de Estado, a mentira derivada da ética da falsa
consciência burguesa, a mentira da ética paranóica e a mentira psicopática.
Esta conceituação visa à compreensão do processo de incorporação da mentira ao
sistema político, tanto em condições normais quanto patológicas.
-----------------
0 comentário "AS VERDADES DA MENTIRA NA POLITICA E O FISIOLOGISMO DOS QUE MENTEM PARA CHEGAR AO PARLAMENTO."
Postar um comentário
Deixe seu comentário