Um vídeo que promete a cura do câncer tem se espalhado por meio das redes sociais e dos telefones celulares. Nele, o narrador anuncia a descoberta da fosfoetanolamina sintética, que “trata a doença sem deixar sequelas, sem enfraquecer o sistema imunológico, sem mutilações ou queda de cabelos”. Para consegui-la, basta uma liminar. A promessa tem gerado uma avalanche de ações no Judiciário. No último mês, mais de 400 processos sobre o assunto foram publicados no Diário de Justiça de São Paulo. Só ontem, 35.
A
substância foi desenvolvida de forma independente pelo professor aposentado
Gilberto Orivaldo Chierice, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da
Universidade de São Paulo (USP). Segundo informações do vídeo produzido pela
Associação Brasileira do Consumidor, foram cerca de 20 anos de pesquisas e,
atualmente, mais de 800 pessoas com câncer utilizaram o remédio e obtiveram
“excelentes resultados”. No entanto, por meio de nota, a própria USP afirma que
a substância não é remédio. “A USP não desenvolveu estudos sobre a ação do
produto nos seres vivos, muito menos estudos clínicos controlados em humanos.
Não há registro e autorização de uso dessa substância pela Anvisa e, portanto,
ela não pode ser classificada como medicamento, tanto que não tem bula.”
De
acordo com nota divulgada pelo IQSC, algumas pessoas tiveram acesso à
fosfoetanolamina por meio do próprio professor Chierice e a utilizaram para
fins medicamentosos. A partir daí, a notícia dos efeitos do remédio teria se
espalhado e a universidade começou a ser procurada para fornecer a substância.
Como a droga não tem estudos clínicos nem registro na Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), o instituto proibiu a sua distribuição.
A
partir de liminares na Justiça, porém, pacientes estão conseguindo derrubar a
proibição, obrigando a universidade a fornecer a substância. Essas ações
judiciais ganharam força desde 6 de outubro, quando o advogado Dennis
Cincinatus entrou com pedido de liminar no Supremo Tribunal Federal para conseguir
o remédio para a mãe, Alcilena Cincinatus, que está em fase terminal, com
tumores no fígado e no pâncreas. O ministro Edson Fachin suspendeu uma decisão
contrária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e determinou que “no
prazo de cinco dias, fosse disponibilizada a substância em quantidade
suficiente para garantir o tratamento, que deverá ser indicado pelo Instituto
de Química, responsável pela pesquisa”.
Diante
da decisão, centenas de pessoas entraram com liminares e filas se formaram na
porta da universidade para conseguir a fosfoetanolamina. A USP destaca que vem
cumprindo os mandatos judiciais dentro da capacidade, mas não tem condições de
produzir a substância em larga escala para atender às centenas de liminares
judiciais que recebeu nas últimas semanas. E, segundo o IQSC, para as pessoas
que têm liminar, a substância será encaminhada via Correios e o serviço será
cobrado do destinatário.
Precedente
O
oncologista e presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Evanius
Wiermann, afirma que o STF abriu um precedente muito grave. “Eles liberaram sem
nenhuma análise técnica uma droga sem estudos clínicos. Sem evidência
científica. É gravíssimo. Não temos a menor ideia dos efeitos dessa substância
no organismo do ser humano. Quer dizer que, a partir de agora, qualquer um pode
engarrafar água de açude e vender dizendo que é a cura do câncer?”, questiona.
Wiermann
explica que qualquer medicamento em todo o mundo precisa passar por um ritual
antes de ser comercializado. A análise da substância tem três fases: a primeira
analisa a segurança em relação a doses máximas suportáveis para o ser humano; a
segunda comprova a eficácia; e a terceira compara a droga experimental com os
remédios já existentes no mercado para checar a efetividade. “A partir daí,
qualquer substância pode ser liberada pelas agências sanitárias. De cada mil
apresentadas, só uma vira medicamento. As pessoas estão tomando um remédio que
só foi testado em animais. Estão se valendo da esperança das pessoas para
usá-las de cobaias sem nenhuma segurança. Pior, várias estão abandonando os
tratamentos.”
No
vídeo que divulga a fosfoetanolamina sintética e incentiva as pessoas a
entrarem com liminares para consegui-la, o especialista em Finanças Marcelo
Segredo afirma que a droga não é aprovada pela Anvisa por causa dos interesses
financeiros da indústria farmacêutica, que fatura bilhões com a doença. “O
medicamento da USP custa R$ 0,10 cada cápsula”, diz.
A
Anvisa afirma, por meio de nota, que nenhum processo de registro de medicamento
foi apresentado à agência. “A etapa é fundamental para que a eficácia e
segurança do produto possa ser avaliada com base nos critérios científicos
aceitos mundialmente”, destaca.
“Não
é burocracia. É segurança. Fica parecendo que os médicos são os vilões dessa
história. Parece que queremos tirar a esperança das pessoas. É o contrário.
Queremos salvaguardar a vida dos pacientes”, acrescenta Wiermann. Marcelo
Segredo foi procurado pela reportagem, mas não retornou. Durante todo o dia, o
telefone que aparece nas imagens para mais informações não atendeu.
Por
meio de nota, a Associação Brasileira do Consumidor afirma que ingressou com
uma Ação Civil Pública em defesa dos associados portadores de câncer com o
objetivo de obter uma liminar. “O intuito da nossa entidade é trazer esperança
e qualidade de vida para pacientes que não obtiveram resultados através dos
tratamentos convencionais, não tendo, portanto, qualquer tipo de conotação
especulatória, visando apenas o bem-estar de nossos associados, que infelizmente
sofrem desse mal.”
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