Influenciado por Hegel,
Husserl, Heidegger, Marx e Descartes, Sartre, o primeiro fenomenólogo francês,
é muito apreciado por sua capacidade de ter sido filósofo, literato e político
engajado ao mesmo tempo. Sua obra principal, base do existencialismo, é o Ser
e o Nada, publicado em 1943, onde ele dedica um item à questão do olhar, ao
qual atribui um lugar de suma importância para a constituição do ser.
Segundo ele, o olhar mascara os olhos, pois desde o
momento em que o percebemos, os olhos são colocados em segundo plano. Este
olhar não está ligado a uma forma determinada. Não é somente a convergência dos
glóbulos oculares, mas uma manifestação de tudo que o lembre (barulho de
passos, ranger de portas, etc), assim sendo, quando percebemos o olhar,
deixamos de perceber os olhos. O olhar não é neutro, ele me avalia e me atribui
julgamentos de valores que são, ao mesmo tempo, verdadeiros e falsos, e por
isso o outrem me constitui através de seu olhar.
Quando fixo meu olhar sobre o outrem eu o concebo,
por probabilidade, em um contexto, ele se refere a mim mesmo e a alguma outra
coisa além dele próprio (o local onde se encontra). Isto o faz sujeito, além de
sua objetividade. Quando sou olhado, é minha objetividade que prevalece. Ser
uma coisa para o outrem, ou seja, para aquele que me olha, é a anulação da
minha liberdade, porque o outrem me envolve com seu olhar e me revela o meu
ser-objeto.
Sartre cita o exemplo de um jardim onde temos a
grama, as cadeiras, etc, nesse contexto, vejo um homem que passa. Eu o percebo
como um homem e não como uma coisa a mais, pois ele não é, simplesmente, visto,
mas também vê as coisas que estão ao seu redor. Este homem me vê e há uma fuga,
a percepção me escapa, a própria presença do outro me escapa; sou afetado
profundamente pelo olhar e perco minha transcendência.
Podemos, segundo o autor, distinguir o olhar em
três momentos: primeiramente o homem acrescido à paisagem, onde é concebido
como objeto que pode ser retirado do contexto, tal como um banco, uma árvore,
ou qualquer outra coisa; em seguida, existe o homem em relação com a paisagem,
uma relação unívoca que escapa dele, ele não pode ser retirado, mas não tenho
relação real com ele, aí, ele é, ao mesmo tempo, objeto e sujeito; por último
temos o homem em relação a mim, onde ele passa de objeto a sujeito.
A probabilidade me apresenta o outro como a
desintegração de meu universo, pois não é certo que ele faça o que creio que
fará. Da mesma forma, este outrem descentraliza o mundo porque não posso
afirmar que o mundo que vejo ao meu redor é visto da mesma maneira por ele.
Além disso, quando sou visto por outrem, isto o faz tornar-se sujeito e eu
torno-me objeto, sendo necessária esta conversão.
Assim, o homem, em seu contexto, é, ao mesmo tempo,
objeto e sujeito: “...: o homem se define em relação ao mundo e em relação a
mim próprio; ele é este objeto do mundo que determina um escoamento interno do
universo, uma hemorragia interna; ele é o sujeito que se descobre a mim nesta
fuga de mim mesmo em direção à objetivação.” (SARTRE, 2003, p. 296).[1]
Outro exemplo interessante, citado por Sartre, é o
de uma pessoa atrás de uma porta que está curiosa para ver algo do outro lado.
É uma “situação” que me reflete, ao mesmo tempo, à minha faticidade e à minha
liberdade. Tenho deveres a fazer livremente e, ao mesmo tempo em que sou meu
próprio nada, meu ser me escapa. Existe, aí, a má fé no ato de escutar atrás da
porta e quando ouço um barulho no corredor, concebo que alguém me vê, desta
forma, eu mesmo me vejo e eu existo pela minha consciência irrefletida, a
consciência do mundo expressa no outro que julgo que me vê. Eu sou, então, o
objeto da consciência reflexiva, no entanto, não sou objeto da consciência irrefletida,
mas, com relação a esta, sou o objeto do outrem.
Sou para mim como um arremesso ao outrem. Meu “ego”[2] está
separado de mim e existe para o outro, contudo, ele está presente como um “eu”
que sou sem conhecê-lo, eu o descubro na vergonha. “Ora, a vergonha, …, é a
vergonha de si, ela é reconhecimento do que sou, mesmo, este objeto que o
outrem olha e julga. Só posso ter vergonha da minha liberdade quando ela me
escapa para tornar-se objeto dado.” (SARTRE, 2003, p. 300).[3]
O meu ser se escreve na e pela liberdade do outrem
que é o meu nada radical. A vergonha é a apreensão de mim mesmo como natureza
que me escapa, ela existe, somente, pela revelação do outro. A existência do
outro é a minha queda original, este “outro-olhar” é minha transcendência
transcendida.
O outrem ultrapassa minha possibilidade de me
esconder num canto do corredor. Minha possibilidade passa a ser probabilidade
porque ela está fora de mim. Diante do olhar do outrem, não sou mais mestre da
situação, ou, se o sou, essa situação tem uma dimensão que me escapa.
Pelo olhar do Outrem, dou-me conta da espacialidade
– por causa da distância entre olhar/olhado que me é dada, e, também, da
temporalidade – por causa da simultaneidade: dois existentes que não têm
nenhuma outra relação se unem, temporariamente, pelo olhar. Por este olhar em
minha direção, provo uma “presença transmundana” sem distância entre nós, não é
um olhar no mundo, mas além do mundo porque ele o transcende.
…: não é
enquanto está ‘no meio’ de meu mundo que o outro me olha, mas é enquanto ele
vem em direção ao mundo e a mim com toda sua transcendência, é enquanto ele não
está separado de mim por distância alguma, por objeto algum do mundo, nem real,
nem ideal, por nenhum corpo do mundo, mas pela sua única natureza de outrem.
(SARTRE, 2003, p. 309).[4]
O objeto têmporo-espacial, que eu sou, me expõe aos
julgamentos do outrem e, assim, sou escravo, porque a liberdade, que é a
condição do meu ser e da qual sou dependente, não é a minha.
Nada me separa do outrem porque ele está em mim,
porém, sua liberdade e sua consciência não me são, jamais, dadas, pois se me
fossem dadas passariam a ser objeto e eu deveria cessar de sê-lo. O objeto não
tem características da consciência porque quem as tem por mim, é a consciência
que é minha. Isto quer dizer que o “eu-objeto-por-mim” não tem características
da consciência pois ele é um eu que não está em mim.
Desta forma, sou de maneira a não ser o que sou e a
ser o que não sou. Existe um ek-stase[5] que
é o desprendimento de mim que me constitui para mim, eu sou meu próprio
desprendimento, meu próprio nada.
De fato, meu ser para o outro é uma queda através
do vazio absoluto em direção à objetividade, uma queda que é alienação e me
impede de ser objeto para mim mesmo, pois não posso me alienar de mim mesmo.
Devo, então, ser um ek-stase que transcende todos meus ek-stases, tendo visto
que não sou o nada que me separa de mim.
Por outro lado, meu eu-objeto é um desprendimento
vivido na unidade ek-stática do “para-si” e o outro é o fato
da presença de uma liberdade estrangeira. Assim, há uma unidade entre meu
desprendimento de mim mesmo e minha liberdade de outrem e não posso conceber um
sem o outro.
Desta maneira, se estou olhando pela fechadura e
ouço passos, sinto vergonha, mas se verifico que não há ninguém, a vergonha que
sinto é falsa. Entretanto, ela não desaparece pelo simples fato de que
constatei que me enganei, continuo com os mesmos sentimentos e sinais. Neste
caso, não é o outrem, nem sua presença para mim que é uma mentira, mas sua
faticidade, a ligação contingente de outrem a um ser-objeto no meu mundo. Não é
do outrem que se duvida, mas de sua presença. Esta presença determina os
lugares nos quais posso declarar a ausência de alguém com relação a qualquer
outro alguém. “A ausência é, então, um laço de ser entre duas ou mais
realidades-humanas, que necessita de uma presença fundamental dessas realidades,
umas para as outras e que, aliás, é somente uma das concretizações particulares
desta presença.” (SARTRE, 2003, p. 318).[6]
Sou eu que determino meu “ser-olhado” pelo
“outro-objeto” como presença concreta e provável, e o faço por medo, vergonha,
angústia, etc. O cogito cartesiano afirma minha existência; aqui, Sartre afirma
minha existência para outrem, o ser para o outrem como fato primeiro e
perpétuo.
Quando o “para-si” realiza a negação em sua plena
liberdade, escolhendo-a como finitude, onde o fundamento de seu conhecimento é
a relação original pelo quê o “por-si” deve ser como não sendo este ser, temos
uma negação interna. Aqui, sou constituído “eu-mesmo” pois, este eu é, antes de
tudo, aquele que não é o outro e, por conseqüência, o outro aparece como
outrem.
Há, preferencialmente, uma negação do outrem, mais
do que uma afirmação do eu. É uma negação onde é preciso que o outrem esteja
presente na consciência e que a atravesse para que ela possa escapar ao outrem
que poderá repreendê-la, mas ele continua a existir para a consciência como
“si-mesmo recusado”.
Contudo, se este outrem quer, ele próprio, me
negar, torno-me objeto para ele e ele será somente um ser-próprio recusado
sendo um ser-próprio que me recusa. Quando acontece esta manifestação, sou
limitado, pois é somente o outrem quem pode me limitar. Assim, afirmo minha
livre espontaneidade e faço com que o outro exista. Ele é co-responsável por essa
existência que se dá pelas duas negações, as quais uma mascara a outra.
A vergonha é a apreensão de três dimensões que não
podem desaparecer sem que ela própria desapareça: “Eu tenho
vergonha de mim diante dooutrem.” (SARTRE, 2003, p.
329)[7].
Se umas dessas dimensões desaparece, a vergonha, também, desaparece. No
entanto, quando eternizo meu ser-objeto (aqui, o outrem pode ser somente
sujeito) minha vergonha torna-se, também, eterna, é a origem do temor diante de
Deus. Quando reconheço o outrem como sujeito, sinto vergonha; quando me tomo
por um projeto livre que faz o outrem existir, sinto orgulho ou afirmação de
minha liberdade. A vergonha, o temor e o orgulho são reações originais.
O outrem-sujeito não pode, aqui, ser conhecido ou
concebido como tal, os objetos do mundo não remetem à sua subjetividade, eles
remetem à sua objetividade no mundo como sentido de escoamento intramundano. O
medo vem, em seguida, dar-nos um novo tipo de hemorragia intramundana: sua
passagem a uma existência mágica; ele é a fuga, o desaparecimento.
O outrem-objeto se revela a mim pelo que ele é, eu
não atribuo o conhecimento que tenho à sua subjetividade, ele remete somente a
ele próprio. O outro me faz eu, fazendo-se outro, e mesmo que eu me livre dele,
esta possibilidade estará sempre presente. Desta maneira, ela é inconcebível,
pois só posso conceber “minha” possibilidade, e somente posso apreender a
transcendência, transcendendo-a; devo tomá-la como transcendência transcendida;
no mais, as possibilidades do “outro-objeto” são “possibilidades-mortas”.
O outrem-sujeito, como o outrem-objeto, é
suficiente a si mesmo e remete somente a ele próprio, assim, não posso formar
uma vista do conjunto dos dois modos.
Finalmente, podemos dizer que o “para-si” é um ser
que existe enquanto não é o que é, e é o que ele não é. Sei que o outrem pode
existir para mim em duas maneiras: enquanto “outrem-sujeito” – quando o provo
com evidência e, aí, falta-me conhecê-lo, e enquanto “outrem-objeto” – quando o
conheço e ajo sobre ele. Não há síntese possível entre essas duas formas.
O olhar é, primeiramente, um intermediário que me
remete a mim mesmo. Basta que o outrem me olhe para que eu seja o que sou; ele
me constitui através do olhar. Um olhar que me objetiviza e faz com que eu
deixe de ser possuído pelo mundo; o fundamento da relação com o outrem é o
conflito. Olhando-me o outro me julga, faz de mim objeto de seu pensamento. Eu
dependo dele. Passo a estar em perigo e esse perigo é a estrutura permanente de
meu ser para o outrem. De certa forma, eu poderia gozar dessa escravidão sob o
olhar do outrem, pois se perco minha liberdade, perco, conseqüentemente, minhas
responsabilidades, porém, isso não passa de uma ilusão, porque minha redução ao
estado de objeto não me permite escapar à minha posição de sujeito e, ainda,
solicita esta posição, pois da mesma forma que sou olhado, também olho. O outro
me obriga a me ver através de seu pensamento como eu, reciprocamente, o obrigo
a se ver através do meu. Eu dependo do outro que depende de mim.
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